Quinta do Montalto (Anos 30)
A geração seguinte estará representada por Joaquim António Pereira (1881-1968) e sua mulher. Nascido na "Ribeira" do Olival onde o seu pai laborava uma azenha, veio ainda jovem para Lisboa e aliando muito trabalho à sorte de um 1º prémio num vigésimo de lotaria, vence na vida como industrial de panificação. Casará com Maria da Luz Gomes Pereira, a filha mais nova de Mariano Gomes e, por morte deste, dando tornas aos restantes herdeiros fica dono da totalidade da quinta. Homem bom, com uma personalidade impar, vivia a sua chácara todos os fins de semana, palmilhando caminhos e atalhos, mesmo quase no fim da sua vida, altura em que, com manifesta dificuldade, o fazia agarrado a duas bengalas. Mais do que rendibilizar produções, norteava-se numa visão hedonista onde procurava ter um pouco de tudo para os seus. Nas suas caminhadas, se deparava com uma árvore de fruto morta, anotava num caderninho para o feitor providenciar a replantação de uma espécie idêntica. Nesse tempo, com abundância relativa, ali, havia mesmo de tudo. Galinhas, coelhos, ovelhas, cabras, vacas e até uma mula chamada Carriça. Ameixas brancas e vermelhas, cerejas vermelhas e brancas (da cerejeira Gracinda, ao tanque velho, assim chamada por ser alta e esgalgada como a nora). Ginjas, marmelos, maçãs, laranjas, tangerinas, figos lampos, pingo de mel e de capa rota, uvas de mesa e uvas para um célebre palhete, vinho de bica aberta com pico a esguichar, muito guloso e enganoso no grau. Nozes, pinhões, castanhas, azeitonas, romãs, alperces, pêssegos de roer, de polpa encarnada e, como nunca mais vi, com a polpa de um azul arroxeado, saborosíssimos. Feijão verde, encarnado, manteiga, frade, pepinos, abóboras, melancias, melões, pimentos e pimentões, alfaces, chicória, couves flor, portuguesa, repolhos, nabiças, nabos, cenouras, beterrabas, alhos, cebolas, batatas, grão, milho, trigo, centeio, cevada. Salsa, segurelha, orégãos, coentros, hortelã, louro. Hortênsias, lírios, gladíolos, amores perfeitos, bocas de lobo, rosas, margaridas, túlipas, jarros, crisântemos, dálias. Tudo isto vinha para Lisboa e por nós era consumido. As flores, para enfeitar, também vinham.
Nos anos trinta, o Casal vai abaixo construindo-se no mesmo local uma nova casa, de dimensões ainda mais amplas, cujo estilo arquitectónico fazia lembrar Raul Lino. Mantinha um piso de habitação, sobreposto a uma adega com dois lagares para vinho, agora aumentado por um sótão com travejamento em madeira a sustentar o telhado. Este, enorme, estendia-se a todo o comprimento da casa, apresentando, na ala nascente, divisórias por tabiques formando quartos, uns para uso de actividades domésticas e outros para repouso do dito pessoal. Na fachada norte, a entrada principal fazia-se por uma escadaria que rompia do jardim, quase junto à estrada, com acesso a um alpendre coberto. Ainda no exterior, a nascente, em lugar bem visível, à revelia da local e turística Virgem de Fátima, uma Nossa Senhora da Ascensão, em azulejo azul e branco, protegia e abençoava Um jardim cuidado, com canteiros delimitados por grama aparada, envolvia a fachada norte e nascente, separando-se da estrada por um pequeno muro com lanças pontiagudas alternando com alabardas de duplo gume. A sul e nascente um terraço de balaustre em cimento, fenestrado em arabescos, oferecia a panorâmica de todo o vale e aldeias distantes que se abriam ao olhar numa paz rural. Envolvendo o edifício principal, uma mancha de amarelo ocre pombalino na paisagem, havia todo um casario caiado correspondente a uma garagem e fruteira, situadas do outro lado do caminho e, a sul, fazendo parte de um pátio lajeado onde havia laranjeiras e flores, a casa do alambique e a casa dos caseiros. Ainda mais distante, a casa do motorista e do pastor bem como o celeiro, estábulos, currais, capoeira , pombal e nitreira. Finalmente, murado, um vasto quintal hortícola com árvores de fruto enchia a vista a quem se debruçasse no terraço. No centro, um tanque em cimento coberto por latadas de videiras engalanava o espaço e servia para a rega.
A terceira geração é plural e representa-se no casal Filipe Gomes Pereira (1914-1997) e Gracinda Henriques Gomes Pereira (1912-2001) já que, pese algum antagonismo formal, souberam apoiar-se mutuamente, concretizar em comum uma vida idílica e seguramente feliz, contribuindo assim para uma vivência familiar bem alargada que deixa saudosas e gratas recordações a quem assistiu e participou.
Ainda no tempo do ascendente, a eles se deve a construção de uma piscina de águas correntes com 17 X 5 m e quase 4 m de profundidade máxima. Por ser então única na região constituía-se potente magneto-chamariz das famílias da vizinhança que, como nós, ali passavam férias em Setembro. Junto à eira nova transformaram o eirado em campo de jogos, onde houve prática sucessiva do Croquet, Badmington e Volei, em confrontos onde o magnetismo era outro. Entre amuos, lágrimas sentidas, choros convulsivos e abandonos de raiva, conhece-se quem tenha aprendido a ganhar só moralmente e, obviamente, perdido. Como se depreende, os anos 50 e 60 foram bem animados, aglutinando, nas férias grandes, toda a primalhada (Jorge Ferreira, Lagoa, Gomes de Oliveira e outros) às famílias Acácio de Paiva, da Quinta da Serrana, da Quinta dos Paços, de Ourém e tantos mais, já que vinham também os amigos dos nossos amigos. Em 1968, após avantajadas obras de remodelação, a casa adquire a configuração actual. Mantendo sensivelmente a mesma volumetria exterior, todos os interiores serão modificados e reconstruídos ganhando-se outra habitabilidade e tornando-a mais disponível e senhorial. O sótão desaparece dando lugar a um piso com quartos e casas de banho obtendo assim o pleno direito de ser um 2º andar. Em cantaria de granito, pedras vetustas (séc. XVIII) são trazidas de Castelo Branco, de uma propriedade herdada, substituindo, com vantagem, o cimento do balaústre no terraço e do tanque no quintal. No vão de uma escada, acolhe-se uma fonte com azulejos policromados da Viúva Lamego, circundantes a um painel que ostenta um belíssimo soneto inédito do poeta Acácio de Paiva.
Na evolução das três últimas décadas, face a implicações de políticas agrícolas bem como às progressivas carestia e carência do pessoal rural, surgem várias tentativas de rendibilizar estes 50 ha. Se a opção lógica apontava a pecuária, foi esse o sentido enveredado na busca de algum provento. Começou-se pela suinicultura e, mais modestamente, na avicultura e na cunicultura. Com entusiasmo melhoraram-se as instalações e construíram-se outras consentâneas à época. Importaram-se Largewhite dinamarquês e, inovando a nível nacional, o Pietran belga. Mas, ainda nos anos 70, a peste suína folgou entre as varas e o abate obrigatório dizimou também as esperanças. Os coelhos extinguiram-se pouco a pouco e o aviário foi-se mantendo em decadências sucessivas. Perante a perca no investimento e o estiolar da fazenda em manutenções necessárias, avançou-se para melhoramento com replantios de vinha, na mira das excelentes condições enológicas oferecidas pela região de Ourém às produções vinícolas. Simultaneamente, após uma experiência anterior com Charoleses, inicia-se uma vacaria de Frísias, em semi-estabulação, sendo importados directamente da Alemanha, como garantia de qualidade, alguns animais de "pedigree" apurado. Mais uma vez a exploração pecuária só premiou com anseios sentidos. A falta de pessoal qualificado e, sobretudo, como produtores, a enorme dependência das indústrias transformadoras, foram as razões principais de um descalabro financeiro que principiou logo com a falência da Ribacal a lesar substancialmente o património.
É precisamente na alvorada do milénio que surge a quarta geração constituída nos "Herdeiros de Filipe Gomes Pereira". Englobada também nessa designação desponta já uma quinta linhagem como prestimosa e essencial ajuda.
Convertidos à Agricultura Biológica, com investimento em novas castas, apostou-se na quantidade e qualidade do plantio e replantio da vinha. A horticultura dá os primeiros passos na busca da excelência dos produtos. Apesar dos vinhos, já bem premiados, serem ao momento uma realidade adquirida, ainda é cedo para deixar aqui escrito sobre prosápias etéreas ou projectos utópicos que só o futuro contemplará em certezas, esse futuro que os vindouros saberão acrescentar a este passado que com orgulho transportamos.